domingo, 30 de novembro de 2014

Sobre se lançar no voo do pássaro

Fim de ano, fim de período, inferno astral. Duas faculdades, um curso, uma monografia. Domingo passado eu deitei na cama e disse: “É nessa semana que eu tenho três crises de enxaqueca, uma amigdalite, uma dor na lombar e acabo passando três dias em casa de repouso. Vambora”. A semana passou, hoje é domingo de novo e fora as pouquíssimas horas dormidas, eu sobrevivi, sem nem encostar nas enormes cartelas de remédio que levava na mochila em caso de emergência. Sem dor, sem estresse, com sorriso.
Acontece que finalmente, eu estacompleto a minha semana, o meu tempo e a minha disposição em coisas que me nutrem e me fazem feliz. Preencho com amigos que eu tenho orgulho de estar ao lado e que a cada dia me apresentam uma nova reflexão sobre a vida de um jeito bonito. E mais do que tudo, hoje eu falo, falo, falo sem parar. Sobre todos os meus projetos, ideias, vontades. As coisas literalmente deixaram de ficar somente na minha cabeça e ganharam uma força enorme quando sairam pelo mundo, feito passarinho.
Acontece que eu aprendi a respeitar meu ritmo e meu corpo, aprendi a colocar no meu horário um tempo para mim e mais do que tudo, eu sei que se alguma coisa der errado no meio do caminho, não tem problema. Semântica não é tão importante assim na minha vida e não faz tanta diferença tirar 2 ou 9 na prova. E eu só preciso de 2 pra passar. Eu sei disso faz tempo, muito tempo. Não canso de dizer por aí que prova não faz a menor diferença, que não quer dizer nada sobre ninguém. Mas como era difícil falar isso pra mim mesma e aceitar tirar 2 em uma prova – que no final talvez eu nem tenha ido tão “mal” assim.

Acontece que, a duras penas, aprendi a fazer do obstáculo, degrau. Ou caminho. E desde que passei a ver minha dor como forma de conhecer a mim mesma, tudo na vida tomou outra proporção. Me sinto mais completa, mais eu, mais pronta pra encarar o mundo que olha, não é nada fácil não. E é incrível perceber a complexidade das coisas e de mim mesma sem ter medo disso. Encarar as contradições, discussões e questões da vida sem simplificar, relativizar, não. Me lanço no mundo, peito aberto, não tenho nada a perder.

Obrigada a todos os meus amigos e família que me acompanham no processo e fazem tudo ficar mais rico, complexo e completo.

Escrito em 10 de setembro de 2013

Outro dia, quando eu estava saindo de casa, segurei a porta para uma velinha entrar na portaria. Depois que fechei a porta o porteiro me disse: "Ela é empregada." Confusa, eu lhe respondi que era uma senhora. Passei uma hora no ônibus tentando entender aonde foi que o mundo errou para que as pessoas não fossem mais olhadas como pessoas e sim como suas funções. 

Naquele mesmo dia, ouvi a grande Rosa Maria Martelo falando sobre o neoliberalismo e sua capacidade de, através da linguagem, associar o indivíduo apenas a sua função social e tornar normal aquilo que é a maior atrocidade. Em poucas e não tão belas palavras: a criação do senso comum. Rosa (e como é lindo esse nome) falava da poesia, e como só ela é capaz de subjetivar o indivíduo, trazer a tona sua singularidade.

Naquela noite uma menina de rua passou a mão no meu rosto e eu, assustada, recuei. Respirei e pensei: "Ser humano, não função social" e magicamente meu olhar se voltou para a linda boneca encardida que ela trazia em seus braços. "Sua boneca é mesmo linda." Contei a história a um amigo e ele disse "É aí que eles enfiam a faca na sua cara."

Eu não dormi naquela noite. E certamente não dormirei hoje também. Porque hoje, proibiram as máscaras na rua, impediram pessoas de se manifestarem e tornarem-se sujeito. Hoje colocaram vidraças de bancos acima de seres humanos e novamente a função social se sobrepôs.

Além de tudo, vejo na novela termos como "coxinha" e "vândalo" se repetirem, como se esse vocabulário fosse natural ao nosso cotidiano há anos. E aí comecei a entender uma das muitas artimanhas do neoliberalismo para tornar grandes vitórias e lutas, senso comum.

Os olhos da menina de rua não saem da minha cabeça, assim como os olhos de todos os manifestantes que sofreram e sofrerão muito ainda com as atrocidade da lógica do poder. Para conseguir ficar em paz e seguir em frente, Rosa Maria Martelo também ecoa dentro de mim: POESIA É SOLIDARIEDADE.